Por: Jana de Paula
Você pode não acreditar, mas ainda hoje, em pleno advento do século 21, nos primórdios do Terceiro Milênio, existe uma legítima antepassada dos povos que viveram nos prados, várzeas, chapadões, pantanais, praias, lagoas, montanhas e florestas do Brasil, muito antes de as tribos conhecidas terem visto a luz do sol. O nome da matriarca em questão é Sará-mei-jê, a última descendente de um povo que viveu onde, tempos e tempos depois, floresceram os Boe ou Bororo, na região do Brasil hoje chamada Centro-Oeste. O povo de Sará-mei-jê era menos do que uma lembrança quando nasceram os filhos de Tupã nas selvas brasileiras.
Você pode não acreditar, mas ainda hoje, em pleno advento do século 21, nos primórdios do Terceiro Milênio, existe uma legítima antepassada dos povos que viveram nos prados, várzeas, chapadões, pantanais, praias, lagoas, montanhas e florestas do Brasil, muito antes de as tribos conhecidas terem visto a luz do sol. O nome da matriarca em questão é Sará-mei-jê, a última descendente de um povo que viveu onde, tempos e tempos depois, floresceram os Boe ou Bororo, na região do Brasil hoje chamada Centro-Oeste. O povo de Sará-mei-jê era menos do que uma lembrança quando nasceram os filhos de Tupã nas selvas brasileiras.
Seu conhecimento milenar data do período em que boa parte do
governo mundial operava na área hoje ocupada pelo Lago Titicaca. Nesta época,
alguns dos representantes mais ilustres deste governo apreciavam muito as alvas
areias que se espraiavam pelo braço de mar que compunha a vetusta Praia Branca,
de onde parte esta estória.
Quem quiser conhecer a Praia Branca – e não afirmo que haja quem o
queira – deve ser um craque no exercício da abstração. O que sobrou deste que
foi um dos principais pólos das lendárias tribos que viveram num tempo perdido
nas dobras das eras, está sob o cascalho e as pedras enormes da Chapada dos
Guimarães. Com muita atenção e algum conhecimento é possível topar com os
restos das conchas com que as donzelas e as belas mulheres enfeitavam seus
longos cabelos negros, que emolduravam suas peles cor de bronze novo e que,
tempos depois, foram chamadas peles vermelhas.
Com a ajuda de Sará-mei-jê, é possível penetrar neste passado e
revivê-lo como se no presente ele vivesse. É que esta vetusta senhora adquiriu
um tipo de conhecimento que rompe a noção de linha do tempo, tão necessária
hoje em dia. Alguns, menos esclarecidos, chamam às suas artes de magia, mas não
na frente dela... Não que seja corriqueiro topar com esta senhora, embora ela
habite as margens da Praia Branca, hoje escondida no fundo da Chapada dos
Guimarães.
De fato, é dificílimo encontrar Sará-mei-jê. Seria mais honesto
dizer que é improvável que alguém mantenha qualquer circunlóquio com ela.
Talvez devido à sua idade, a senhora não tem muita paciência com os atuais
visitantes dos Domínios Antigos, sempre barulhentos e esfomeados, com toda
aquela aparelhagem eletrônica e a petulância de saber alguma coisa sobre
ecologia e defesa do meio ambiente.
Sará-mei-jê emerge muito raramente de seu retiro. E sua disponibilidade
é sempre um acontecimento. Portanto, já que esta história trata de uma das
raras ocasiões em que ela se deixou ver, vamos descrever sua aparência e
características. É que sua presença foi exigida nos tempos correntes e é real a
possibilidade de a senhora ser divisada na borda de uma clareira da Chapada dos
Guimarães, após uma chuvada refrescante e luminosa.
Sará-mei-jê dificilmente se separa da onça Tjericá... Mas nossa
intenção é descrever a sábia mulher, que o povo atual que mora na Chapada chama
de a “Bugra Onça”. Ela tem a pele lisa e, embora esta dê a impressão de ser
espessa como uma casca de carriola, se nós passássemos a mão sobre seu rosto ou
corpo – o que é de todo desaconselhável –, a sentiríamos macia e suave e, não,
porosa. Os olhos são redondos, ligeiramente amendoados, com a íris de um
castanho brilhante como melado de cana bem batido e esticado. O nariz é pequeno
com a ponta arredondada e ligeiramente achatado onde deveria ser arrebitado. A
boca é firme e fina e, o mais improvável de tudo, tem a dentição completa, com
perfeitos dentes perolados e miúdos que rebrilham quando sorri (o que faz com
frequencia). O rosto é triangular com a ponta mais fina se arredondando no
queixo ligeiramente proeminente. Os cabelos, que cobrem as costas
completamente, são negros como a pele de Tjericá. O pescoço longo liga a cabeça
a um corpo miúdo, delgado e muito ágil. Os pés são um prolongamento da terra
onde estão firmemente pousados: os dedos abertos, grudados no chão, totalmente
entrecruzados por veiazinhas azuis, que saltam e latejam visivelmente numa
pulsação acelerada. O mesmo circuito de veiazinhas azuis e latejantes se repete
no dorso das mãos de dedos compridos, finos, com as unhas quadradas rematando
as pontas.
Sará-mei-jê veste uma túnica vermelho-bronze como sua pele, que
vai até abaixo do joelho. Para impedir que a massa de cabelos lhe caia no
rosto, ela a traz submissa por uma tiara tecida com as penas do Tuiuiú. No
pescoço rebrilha uma esmeralda do tamanho de um polegar. Esta é a vestimenta da
índia no auge do calor ou no rigor do inverno.
Não se sabe onde é sua morada. Nunca que se recorde, por muitos e
muitos anos, um ser humano visitou o lar de Sará-mei-jê para descrevê-lo. Nas
raras vezes em que ela aparece, é vista sob um imenso ingá, com Tjericá
aboletada a seu lado. O perfume das flores locais que dela emana é encantador e
refrescante. Sua presença não causa repulsa, embora seja difícil encará-la por
muito tempo: se tem a sensação de mergulhar num lago, cristalino e muito fundo,
de onde talvez não se saiba voltar...
Pois esta história justamente começa numa das raras aparições de
Sará-mei-jê, na orla do caminho que leva a uma funda cratera, no coração da
Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, Brasil.
Jana de Paula - Perfil
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