quinta-feira, 4 de julho de 2013

Pele Vermelha - Prólogo

Por: Jana de Paula


Você pode não acreditar, mas ainda hoje, em pleno advento do século 21, nos primórdios do Terceiro Milênio, existe uma legítima antepassada dos povos que viveram nos prados, várzeas, chapadões, pantanais, praias, lagoas, montanhas e florestas do Brasil, muito antes de as tribos conhecidas terem visto a luz do sol. O nome da matriarca em questão é Sará-mei-jê, a última descendente de um povo que viveu onde, tempos e tempos depois, floresceram os Boe ou Bororo, na região do Brasil hoje chamada Centro-Oeste. O povo de Sará-mei-jê era menos do que uma lembrança quando nasceram os filhos de Tupã nas selvas brasileiras.

Seu conhecimento milenar data do período em que boa parte do governo mundial operava na área hoje ocupada pelo Lago Titicaca. Nesta época, alguns dos representantes mais ilustres deste governo apreciavam muito as alvas areias que se espraiavam pelo braço de mar que compunha a vetusta Praia Branca, de onde parte esta estória.

Quem quiser conhecer a Praia Branca – e não afirmo que haja quem o queira – deve ser um craque no exercício da abstração. O que sobrou deste que foi um dos principais pólos das lendárias tribos que viveram num tempo perdido nas dobras das eras, está sob o cascalho e as pedras enormes da Chapada dos Guimarães. Com muita atenção e algum conhecimento é possível topar com os restos das conchas com que as donzelas e as belas mulheres enfeitavam seus longos cabelos negros, que emolduravam suas peles cor de bronze novo e que, tempos depois, foram chamadas peles vermelhas.

Com a ajuda de Sará-mei-jê, é possível penetrar neste passado e revivê-lo como se no presente ele vivesse. É que esta vetusta senhora adquiriu um tipo de conhecimento que rompe a noção de linha do tempo, tão necessária hoje em dia. Alguns, menos esclarecidos, chamam às suas artes de magia, mas não na frente dela... Não que seja corriqueiro topar com esta senhora, embora ela habite as margens da Praia Branca, hoje escondida no fundo da Chapada dos Guimarães.

De fato, é dificílimo encontrar Sará-mei-jê. Seria mais honesto dizer que é improvável que alguém mantenha qualquer circunlóquio com ela. Talvez devido à sua idade, a senhora não tem muita paciência com os atuais visitantes dos Domínios Antigos, sempre barulhentos e esfomeados, com toda aquela aparelhagem eletrônica e a petulância de saber alguma coisa sobre ecologia e defesa do meio ambiente.

Sará-mei-jê emerge muito raramente de seu retiro. E sua disponibilidade é sempre um acontecimento. Portanto, já que esta história trata de uma das raras ocasiões em que ela se deixou ver, vamos descrever sua aparência e características. É que sua presença foi exigida nos tempos correntes e é real a possibilidade de a senhora ser divisada na borda de uma clareira da Chapada dos Guimarães, após uma chuvada refrescante e luminosa.

Sará-mei-jê dificilmente se separa da onça Tjericá... Mas nossa intenção é descrever a sábia mulher, que o povo atual que mora na Chapada chama de a “Bugra Onça”. Ela tem a pele lisa e, embora esta dê a impressão de ser espessa como uma casca de carriola, se nós passássemos a mão sobre seu rosto ou corpo – o que é de todo desaconselhável –, a sentiríamos macia e suave e, não, porosa. Os olhos são redondos, ligeiramente amendoados, com a íris de um castanho brilhante como melado de cana bem batido e esticado. O nariz é pequeno com a ponta arredondada e ligeiramente achatado onde deveria ser arrebitado. A boca é firme e fina e, o mais improvável de tudo, tem a dentição completa, com perfeitos dentes perolados e miúdos que rebrilham quando sorri (o que faz com frequencia). O rosto é triangular com a ponta mais fina se arredondando no queixo ligeiramente proeminente. Os cabelos, que cobrem as costas completamente, são negros como a pele de Tjericá. O pescoço longo liga a cabeça a um corpo miúdo, delgado e muito ágil. Os pés são um prolongamento da terra onde estão firmemente pousados: os dedos abertos, grudados no chão, totalmente entrecruzados por veiazinhas azuis, que saltam e latejam visivelmente numa pulsação acelerada. O mesmo circuito de veiazinhas azuis e latejantes se repete no dorso das mãos de dedos compridos, finos, com as unhas quadradas rematando as pontas.

Sará-mei-jê veste uma túnica vermelho-bronze como sua pele, que vai até abaixo do joelho. Para impedir que a massa de cabelos lhe caia no rosto, ela a traz submissa por uma tiara tecida com as penas do Tuiuiú. No pescoço rebrilha uma esmeralda do tamanho de um polegar. Esta é a vestimenta da índia no auge do calor ou no rigor do inverno.

Não se sabe onde é sua morada. Nunca que se recorde, por muitos e muitos anos, um ser humano visitou o lar de Sará-mei-jê para descrevê-lo. Nas raras vezes em que ela aparece, é vista sob um imenso ingá, com Tjericá aboletada a seu lado. O perfume das flores locais que dela emana é encantador e refrescante. Sua presença não causa repulsa, embora seja difícil encará-la por muito tempo: se tem a sensação de mergulhar num lago, cristalino e muito fundo, de onde talvez não se saiba voltar...

Pois esta história justamente começa numa das raras aparições de Sará-mei-jê, na orla do caminho que leva a uma funda cratera, no coração da Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, Brasil.

Jana de Paula - Perfil



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