quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Lata dágua na cabeça

Crédito da imagem: Saber Cultural (Artista: Beth Marques)

Por: Jana de Paula


Quando, em junho de 2001, eu viajei a trabalho para Tel-Aviv uma particularidade atraiu minha atenção. Não foi o charme discreto das mulheres que tentam - sem sucesso - esconder sua beleza. Não foi a visão de placas de energia solar em cada teto de cada casa ou prédio. Não foi a imagem da areia vermelha do deserto cobrindo belos automóveis. Não foi nem mesmo o fato de na cidade, como em toda Israel, se respirar profundamente religião. O que fixou minha atenção foram os canteiros. Em Tel-Aviv, a Nascida do Deserto, não há calçada, esquina, pequena praça ou amplo paço em que não haja canteiros. E entre a terra (esta negra, fértil) que abriga a vegetação, minúsculas mangueiras a borrifar água, ininterruptamente. Não vi sequer uma folha crestada.

Todos os sentimentos desta minha inesquecível viagem retornaram ao meu suposto hoje, dia 5 de fevereiro de 2015. E foi um artigo a me trazer de volta este belo momento. Artigo do site UOL discorre sobre o fato de os cariocas serem os brasileiros que mais desperdiçam água, a uma taxa superior à definida pela ONU. Aí, os pensamentos correram soltos como cavalos selvagens. Tentei segurá-los pela crina, um a um. 'Nós, os cariocas, somos todos meio índios. Talvez esteja no nosso DNA a abundância de tudo o que havia aqui antes da colonização... Rios, riachos, cachoeiras e o calor e o sol a nos convidar para ás águas de Iara...' 

Mas o cavalo é selvagem... e não amansa com a piada. Ao contrário, desabala. E empina num fevereiro da minha infância, quando ainda estava em voga uma marchinha de Carnaval - ou seriam meus pais que punham o disco da Marlene na vitrola? - e que começava assim: "Lata d'água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria..." E minha mãe dizendo: 'Desliga esta torneira, menina!' ou 'Acaba esse banho, garota'. Não. Não fui criada numa 'cultura de desperdício'. Mas, lembro da abundância. Havia uma bica na esquina da minha rua. Uma bica! Era pouca coisa, é verdade, mas, lá, eu e meus comparsas nos molhávamos sem as birras das mães, todas desesperadas com a 'lata d'água na cabeça'.

O cavalo branco retorna à Israel, décadas depois - ou foi antes? Da janela do ônibus de turismo, vejo dois mundos: os milagrosos canteiros de Tel-Aviv que zombam do deserto e minha abundância hereditária das fontes murmurantes onde eu mato a minha sede e onde a lua vem cantar... Já em 2001, há 14 anos, a imprensa alertava para riscos de apagões e escassez de água em nossas terras. Inclusive houve um apagão uns dois ou três anos depois, não me recordo ao certo - entenda, cavalos até voam mas não têm relógio.

E eu pensava daquela janela refrigerada: que importa se é deserto ou alagado? O que conta é a vontade e mais uma coisinha, coisa pouca mesmo: a vontade de ser abundante. Não basta fazer brotar uma cidade do deserto, esta cidade precisa de verde!

E volta Maria com a lata d´água. Havia água no Rio de Janeiro naquele fevereiro perdido no tempo. O que não havia era inteligência para fazer a água chegar às casas dos cariocas. E havia, é claro, o 'romantismo do samba', a vontade de tocar pandeiro e cuíca com o sofrimento, a escassez. Que lindo! Maria, sofredora, que 'sobe o morro e não se cansa e pela mão leva a criança'. O samba é, de fato, maravilhoso, a poesia bela. Mas o subjacente é a consciência da escassez. Para a 'minha bica' continuar a jorrar, Maria tem que subir o morro com a lata d'água na cabeça.

De repente, recebo um leve coice do cavalo rubro, quase um carinho, apenas para me lembrar que ele está ali, bufando no meu cangote... E volto à matéria do UOL que, vejo agora, repete uma outra, do Estadão. Segundo a pesquisa divulgada, os cariocas gastam mais do que o consumo per capta recomendado pela ONU, "com base em padrões europeus". Oquêquiéissô? Mais um padrão de medição? E de que vale isso? Europeus? Hã? Os recursos hídricos do Brasil e da Europa são semelhantes? Na Europa faz 40 graus com sensação de calor (outro padrão) de 45 graus? Por que a ONU mediu isso? De que adianta medir quantas pessoas morrem de fome no mundo se, mesmo com o padrão de morte per capta definido, continua-se a morrer de fome?

Lá vai Maria... La vai Maria...

Fiz uma pesquisa superficial, boba mesmo, no Google e, sem olhar todas as outras trocentas respostas às minhas palavras de busca, deparei logo como este levantamento sobre Bacias Hidrográficas do Brasil - principais bacias, mapa, localização, rios, onde são listados, por quilômetros quadrados, os principais mananciais, ou seja, as fontes murmurantes onde eu mato a minha sede e onde a lua vem brincar. E, desta vez, a morena sestrosa perdeu seu olhar indiferente e o mulato ficou menos inzoneiro. A 'minha bica' tem Sete Milhões e Duzentos e Noventa e Três Mil quilômetros quadrados de água! Uau!

Meus pensamentos estão cada vez mais intratáveis, selvagens, indóceis. Não serei mais capaz de segurá-los. Vou soltar meus dentes e unhas de seus pelos e carnes. E vou soprar nas suas narinas para espicaçá-los ainda mais e finalmente deixá-los ir, libertos. Monto o Cavalo Alado que me leva para um mundo brilhante e brumoso. Distingo entre a névoa uma pedra nacarada, onde leio, incrustada a ouro, uma das frases atribuídas a Sir Francis Bacon. A frase está em latim, mas eu a leio com facilidade: "Conhecimento é poder". O Pégaso relincha. Ainda não é isso! Agora sou eu que bufo e resfolego e escoiceio... Ah! Finalmente! O conhecimento liberta do poder que escraviza. Obrigada, Sir. Faltava a tradução...

Volto ao presente. Estou meio apagada no sofá, suando em bicas. A chuva, pela qual tantos bateram o tambor, cai fulminante, corta o fornecimento da energia elétrica e eu derreto aos 35 graus com sensação de calor de 45 graus.

La vai Maria... Lá vai Maria...

Obrigada aos compositores, músicos e cantores que tão poeticamente definiram a consciência de massa da escassez e da abundância. Deixa cantar de novo o trovador...



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