quarta-feira, 24 de julho de 2013

Pele Vermelha - Um Conto Americano - Capítulo 2

Capítulo 2

E Perê Azil saiu pelo mundo...


Perê Azil estava de volta à aldeia. Sempre após seus dias de retiro em Tori, no Topo da Montanha, sua aldeia, embora pequena, com cerca de 300 habitantes, lhe parecia a Grande Cidade do Oeste. As vozes musicais das mulheres moendo grãos e tubérculos, que eram a base da alimentação das suas famílias; os risos das crianças correndo atrás de algum animal domesticado; o canto dos homens na lida com a madeira, o barro, a palha, as pedras...

... Tudo soava tão diferente da atmosfera de Tori, a Pedra da Montanha! Lá em cima, quando se comia, eram somente os frutos das árvores. Só se bebia da fonte de água que jorrava da enorme pedra branca brilhante que circundava toda a vegetação exuberante daquela parte de acesso restrito da montanha. O grupo de homens e mulheres que lá vivia dormia algumas parcas horas e quase nunca no interior de suas alvíssimas tendas. Muitas vezes Perê encontrava um dos Sábios cochilando sob frondosas copas de árvores com troncos rosados e tenras folhas amarelas; à beira dos córregos cristalinos que brotavam subitamente das reentrâncias das pedras: ou, ainda, sobre esteiras estendidas nos estreitos bosques perfumosos.

Mas, o que mais maravilhava Perê em Tori era o riso maroto, infantil, que vivia a luzir nos olhos prateados e nos lábios rubros de cada um daqueles homens e mulheres, que viviam exclusivamente para louvar o Único em cada segundo do seu cotidiano. Entre eles não existia azáfama, listas de tarefas árduas e estafantes a serem cumpridas... Eles simplesmente eram. E, no entanto, Perê Azil sabia que toda aquela exuberância e a abundância da área da Praia Branca se deviam àquele grupo, do “não trabalho” que aqueles homens e mulheres realizavam com um sorriso nos lábios.

Quando, há alguns anos, Jorubadá, o líder, fora até a tenda de seu clã, avisar que Perê precisava ser instruído entre os do Grupo de Tori, o rapaz sentiu uma estranha exultação, embora não soubesse defini-la, tão criança ele era. Agora ele sabia um pouco mais. Sabia o quanto a vida sem mácula dos que se mantinham firmes no Topo da Montanha era crucial para o bem de toda a encosta oriental do monte.

Embora fosse um povo simples, Perê sabia o quão perigoso seria se esta gente se afastasse da proteção que lhes era graciosamente oferecida. Mesmo instaladas um pouco abaixo do meio da encosta, era uma benção a proximidade com os Sábios de Tori, pois sua atitude tinha tal poder que era capaz de manter afastadas as mazelas que assolavam a vida dos que foram empurrados para baixo, para a planície, em busca de uma ilusão de felicidade e longevidade que, ao invés de se realizar, tinha apresentado sua face mais amarga: doenças, ódio, vingança, abuso de poder, exploração e violência em todas as suas formas.

Na sua pequena aldeia, porém, de onde se descortinava a Praia Branca abaixo e se recebia brisa do Topo da Montanha, a vida era plena. Próximo àquele pedaço de mar intocado por estar sob constante vigilância de olhos invisíveis, a vida corria bem, as pessoas se respeitavam, havia algum amor a ser partilhado. E essa era a riqueza do seu povo.

O rapaz estacou a meio da encosta onde se erguiam as tendas de seu clã sob a sombra de três frondosas e vetustas árvores – não tão exuberantes ou veneráveis quanto as que vicejavam em Tori, mas vigorosas, saudáveis, de caules escuros, grossos e lisos, folhas largas e brancas, triangulares, matizadas de lilás. Aí, por um momento, Perê contemplou a Praia Branca e o anil do mar, liso como um espelho.

Os barcos eram raros naquela enseada. A Praia Branca, onde havia atracado há muitos anos um grupo originário da Grande Cidade do Oeste, não era usada como porto comum. Apenas embarcações que traziam o selo da Pa Buturê – o núcleo de inteligência e conhecimento da Grande Cidade do Oeste, tinham permissão para penetrar na barra e fincar âncora por lá. No momento não havia nenhuma. Afinal, hoje em dia, pensava Perê, o que iriam fazer os grandes diretores do mundo civilizado ali, naquela Praia Branca perdida no tempo...

Não. Ele não se queixava de seu destino, não arvorava vôos mais altos, saltos mais largos sobre as vastas profundezas de perigos apenas imaginados. Não. Estava bem ali, apesar de às vezes se questionar se a vida era só isso. Ih! Que Jorubadá não registrasse seu pensamento. Perê podia vê-lo ali de pé, a olhá-lo com aqueles seus olhos brilhantes a dizer: “Passado, presente e futuro se fundem. O quê teme?”.

Perê Azil galgou o último degrau de pedra bruta, penetrou na aldeia e atingiu o limiar de sua tenda. Imediatamente lhe subiu às narinas o perfume da pasta moída e empastelada, assada na pedra, da sopa de verduras e frutas e da nata batida...

“- Salve Perê Azil. Que os bons ventos o tragam”. Anaji-i, que o recebeu com palavras tão efusivas, era sua velha e querida ama, que cuidava dos afazeres domésticos do clã dos Azil, junto com duas de suas irmãs, quatro concunhadas e mais sete ajudantes, todas elas mulheres.

Segundo a tradição da tribo de Perê, as tarefas eram realizadas em grupos e eram ligadas a uma família, ou clã, por várias gerações. O clã Koganga de Anaji-i cuidava do bem estar doméstico dos Azil, cujas tendas pertenciam ao Bai, ou tribo, que, por sua vez, era formado por não mais do que três clãs. E foram de fato estes três clãs os remanescentes no Bai, após a descida dos insatisfeitos.

O clã Azil, originariamente, era de escribas e cuidava de organizar e compilar a cultura da agora diminuta sociedade e dos povos daquela parte do mundo. O pai, o avô e o bisavô de Perê eram escribas. Depois que o número de habitantes se reduziu em mais de 90%, o pai de Perê – Perê-E-Li-á se transferira para o Batru, o local de reunião de todos os escribas de todas as tribos, um dos focos principais de sabedoria que emanavam de Pa Buturê, na Grande Cidade do Oeste. Alguém ligado ao clã Koganga certamente cuidava do bem estar dos patriarcas do clã dos Azil.

Já a mãe de Perê, Joku, do clã dos Jorú, estava tradicionalmente ligada ao trabalho de tecelagem e olaria. É preciso dizer que as famílias preferiam que as uniões fossem feitas entre os clãs. Mas isto não era de fato relevante, pois todos daquele Bai eram aparentados, de uma forma ou de outra. Os anciãos dos clãs diziam que os primeiros membros das tribos vieram das estrelas do céu e dos ventos da terra. Quando Perê pediu confirmação da lenda do seu povo, Jorubadá sorriu e respondeu: “A estrela desta tribo ainda está por vir... Ou já chegou?”.

Joku era uma das mulheres de seu clã com maior habilidade para tecer belas túnicas, mantos, véus, cocares delicados, faixas etc. Ela produzia sua cota a partir das penas e pelos dos animais, material que ela pacientemente colhia nos bosques entrincheirados por pedras na encosta, sob arbustos, e nas areias da Praia Branca. Dificilmente ela voltava destas suas incursões sem uma cesta cheia de matéria prima para seu trabalho. As outras mulheres diziam que a sua voz encantava os pássaros, os peixes, crustáceos e mamíferos que, em agradecimento por suas belas melodias, deixavam penas coloridas, tufos de pelo sedoso, escamas rebrilhantes etc., que lhes eram ofertadas nos bicos, presas pelas garras e patas ou agarradas às carapaças. Ao ouvir estas estórias, Joku sorria...

Perê Azil (os homens ao nascer recebiam os nomes do clã dos pais e, é claro, as mulheres recebiam os nomes das mães), embora honrasse o clã dos Azil, como pupilo de Jorubadá, era muito mais parecido fisicamente com sua mãe. Ao invés de onduladas, as madeixas de Perê eram lisas. E não era o negro da noite que os coloria, mas o brilho do barro escuro, ainda cru, com o qual sua mãe moldava utensílios e enfeites. Também não era alto como o pai. De altura mediana, tinha os ombros largos, o tórax proeminente, a barriga lisa como a tábua que em Anaji-i sovava a massa das raízes de casca dura e escura e poupa dourada e maleável. As pernas eram proporcionalmente longas e bem feitas. Só na cor da pele não havia diferença – tinham todos a tez como de bronze recém derretido. Eram peles vermelhas.

Tanto na mãe quanto em Perê o que mais se destacava eram os olhos – grandes e arredondados. E foram justamente estes dois pares de olhos que brilharam intensamente em amor, quando Joku atravessou a tenda e os dois se encontraram no lar à tardinha. Da mulher emanava sentimento profundo por seu único filho, seu orgulho, seu presente do Único.

“-Meus olhos me pregam uma peça ou é mesmo Joku que chega?”, saudou Anaji-í.

“- Seus olhos são mais agudos que os meus e os de Perê juntos, Ji-í. E sua língua está sempre pronta a se mexer... Jorubadá me enviou uma mensagem pelo pássaro azul avisando que meu filho cearia na tenda de Azil e, com seu humor peculiar, concluiu assim: ‘Deixe que suas mãos descansem um pouco do prazer de tecer e moldar e ouça a voz do seu coração’. Larguei meus afazeres e vim aproveitar a companhia do meu querido filho”.

Mal acabara de dizer estas palavras, Joku já se enroscava no colo do filho estendido na esteira, cobrindo-o de beijos.

“- Jorubadá conhece o coração de Perê, que anelava pelos olhos de Jokú Joru, pelos braços de Jokú Joru”, disse o rapaz, enternecido, diante do sorriso de sua mãe.

Anaijí-i estendeu a esteira de junco desenhada com flores sobre a pedra lisa do centro da tenda, colocou as cuias de barro delicadamente moldadas por Jokú, para que bebessem da água cristalina que jorrava do Topo da Montanha, e foi trazendo as travessas de madeira com os alimentos. Depois, finalmente, Anaijí-í se acocorou num dos lados da pedra chata e todos pronunciaram a prece pela abundância, agradecendo o privilégio de desfrutar iguarias tão finas. Em silêncio, o trio saciou sua fome.

Enlevados pela refeição, Perê e Anaijí-i se recostaram nas almofadas para ouvir Jokú cantar. As fendas abertas da tenda desvendavam um céu de anil, onde apontavam as primeiras estrelas da noite, grandes e brilhantes. Pela abertura, penetrava a aragem impregnada de maresia.

Mal havia entoado a última nota da velha canção que lhe fora ensinada por sua mãe, Joku soltou um grito abafado. Jorubadá encontrava-se placidamente instalado no canto leste da sala, sobre uma coberta de xales e mantos, o que a tornava muito confortável. Na semiescuridão do ambiente simples, onde só havia objetos necessários ao bem estar da família, as íris de Jorubadá faiscavam como fogo recém ateado:

“-Sua voz é tão bela, minha cara Jokú. Chego a pensar se você não devia destiná-la exclusivamente ao Único... Mas que tolice digo eu? Como se aqui você também não o louvasse...” Jorubadá falava tranquilamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo ele estar ali, sem ninguém saber como foi que havia chegado.

Fez-se um silêncio profundo no recinto. Anaijí-í abaixou a cabeça e cruzou as mãos sobre o peito, num gesto de submissão. Perê olhava curioso para o Mestre. E o coração de Jokú batia forte, tão forte que não entendia como todos não ouvissem o ritmo apressado do compasso.

Jorubadá sorria, mas desta vez, o brilho maroto dos seus olhos foi substituído por um toque de compaixão, de profundo amor por aqueles seres que deixavam em suspenso os próprios sentimentos para admirá-lo. Não lhe era particularmente agradável a missão que o trouxera à tenda de Azil, o escriba. Mas era o melhor a fazer com os recursos de que dispunha no momento... E diante do que se avizinhava. De todos os que ali esperavam por suas palavras sem sequer respirar, Joku era quem, aparentemente, teria mais a perder. E foi ela justamente quem rompeu o silêncio:

“- Salve pastor das estrelas! Sua presença é uma benção para a nossa tenda”. O formalismo de Jokú denotava a expectativa que a visita de Jorubadá – tão rara – causava. O coração da mulher, que antes disparava, agora mal batia.

“- A satisfação em privar da companhia de amigos tão queridos é principalmente minha. Quase lamento o pouco tempo que me sobra para desfrutar de um prazer tão genuíno. Não fossem minhas atividades tão absorventes, que exerço por minha própria escolha, gozaria mais amiúde de momentos assim”, disse o ancião.

Perê Azil, que havia deixado seu mestre há tão pouco tempo, na impulsividade da juventude replicou: “– Se o senhor não costuma desfrutar destes pequenos prazeres, algo mais o traz aqui”.

“– Sim, meu jovem. Neste intervalo a que vocês chamam tempo, recebemos um chamado de nossos pares que atuam na Grande Cidade do Oeste para que compareçamos a um conselho extraordinário. Alguns eventos aparentemente se precipitaram e as diversas tribos e clãs que vivem sob a sombra da Torre de Oito Pilares reivindicam nossa posição e a disponibilidade de mitigar alguns inconvenientes causados por, digamos, certa displicência”, discorreu Jorubadá.

“– Mas o que acontece por lá?”, quis saber Perê. Ao que Jorubadá respondeu: “Tenho alguns palpites, mas prefiro fazer meus comentários quando eles forem indispensáveis”.

Perê ficou triste com a perspectiva de separação do seu querido mestre. Agora, quando parecia iminente a suspensão de seus retiros em Tori é que o menino via o quanto os desejava.

“- O senhor pretende demorar-se por lá?”, perguntou Perê, acenando para o Oeste com um gesto de mão, como se quisesse ensinar ao mestre o caminho. “- De fato, neste momento não sou capaz de responder a isto com precisão”, respondeu Jorubadá.

Perê não se conteve: “Perê lamenta se afastar de Jorubadá... Jorubadá é muito caro a Perê...”, disse o rapaz, os olhos marejados.

Jokú, que até então mal respirava, soltou um suspiro fundo, mas não ousou dizer sequer uma palavra. Seu olhar não se desviava do rosto de Jorubadá. Por um instante fugaz lhe pareceu que aquela espécie de alegria contagiante que emanava da presença formidável do sábio se havia arrefecido. Mas, logo depois, a energia quase visível que emanava dele restaurou-se, com um tremeluzir, num lampejo súbito e resplandecente.

“-De fato, você não deveria se lamentar, meu menino”. Agora Joku via claramente a luminosidade em volta do rosto de Jorubadá. Perê abaixou a cabeça e silenciou. Ele fora mesmo temerário ao contradizer o mestre. Mas Jokú compreendeu o sentido real das palavras do sábio e, num ímpeto, como se as palavras escapassem sua boca, falou:

“-Perê, rebento de Jokú. Alegria de minha juventude. Sol que ilumina as trilhas do meu caminho. Sorriso que varre minhas tristezas. O venerável o adverte para que não se lamente, simplesmente porque será seu pajem nesta viagem!”

Jorubadá, com o sorriso a emitir faíscas, confirmou com um meneio de cabeça.

“- Mas eu não entendo! Jorubadá sempre alertou Perê para evitar a convivência com nossos irmãos que desceram a montanha! Por várias vezes Jorubadá advertiu Perê do perigo que corremos por habitar tão próximos deles! E agora Jorubadá diz a Perê que mais, muito mais do que descer a montanha, Perê vai atravessar metade do mundo e ir à Grande Cidade do Oeste! Lá é muito mais longe de Tori! E a proteção que Tori nos dá? Ficaremos sem ela? Estaremos expostos a todo o tipo de ataque?” Não havia ira na voz de Perê, mas uma surpresa mesclada com medo, que tornava sua voz estridente.

Jokú aproximou-se mais do filho. Pegou com sua mão pequena as mãos fortes de Perê e sentiu que elas tremiam. Anaiji-í que, até então, não ousara mexer um dedo curvou-se um pouco e foi possível ouvir um soluço abafado.

Uma gaivota gritou ao longe. No horizonte, os derradeiros raios que os iluminara naquele dia, já rubros, esmaecidos, mergulhavam no mar. O firmamento já se cobria com seu manto estrelado e a noite começava: a vida diurna era substituída pela vida noturna – bichos e insetos soltavam seus sons, as árvores se cobriam de luz. As sentinelas do clã se comunicavam por silvos abafados. O brilhar das estrelas eram sinais despertos e tudo o que era vivo se aguçava com a brisa refrescante que soprava da montanha, com seu perfume vivificante...

Na tenda, todos aguardavam as palavras de Jorubadá:

“-De fato o alertei. E mantenho o alerta aos clãs que aqui permanecem, ou seja, de evitarem descer a montanha. Quanto a você, há de fato perigo. Mas Perê não estará sozinho e, sim, na companhia de Jorubadá. E isso faz alguma diferença”.

E continuou:

“- Quanto ao seu aprendizado, não será descuidado. Digamos que agora ingressamos numa nova etapa dele. Eu já havia lhe dito isso, filho. Todo conhecimento precisa ser testado. O que Perê Azil teme?”. Os olhos de Jorubadá perscrutaram os de Perê, até que o rapaz os baixou e, ternamente, encarou os da mãe. Jokú, com lágrimas nos olhos, sorria para o filho:

“- Não será Jokú, da tribo de Joru, valente e destemido, que irá barrar o caminho de Perê. Joru foi testado em força e inteligência; em sabedoria e bondade. E, diante de toda uma tribo oponente aos seus pés, impediu que os seus, vencedores, tocassem num fio de cabelo dos vencidos. E foi o próprio Ti-ti-rã, que navega a estrela cadente com sua esposa, eternamente, que se encantou com a atitude de Joru e permitiu que ele e sua tribo habitassem tão perto de Tori. Não. Não será Joku, da tribo de Joru, que lançará o medo no coração de Perê”.

Levantando-se, a mulher abraçou seu filho, apertando-o um pouco demais e sabendo que seu menino deixava o Bai para tornar-se homem. Foi até uma arca no canto do cômodo e retirou um colar de penas e contas verdes e azuis. Na ponta da pena maior luzia um pequeno cristal. Voltando-se para o filho, pendurou o colar em seu pescoço. Depois, ela juntou num saco tecido por suas próprias mãos mantos, agasalhos, toucas e tudo o que o filho pudesse precisar. E ficou em pé, muito quieta, encarando Perê Azil.

Jorubadá levantou-se, tocou o ombro do rapaz e meneou a cabeça em direção à fenda da tenda. Os dois se encaminharam para fora... Perê se virou, beijou a testa de Anaiji-í, que tudo contemplava com os olhos arregalados, beijou a mãe mais uma vez, atravessou a tenda e se foi.

E foi assim, sem a necessidade de dizer se queria ou não seguir o caminho que surgia à sua frente – pois não lhe foi oferecida a opção – que Perê Azil saiu pelo mundo.

Jana de Paula - Perfil

Pele Vermelha - Um Conto Americano- Capítulo 1

Capítulo 1

De volta à Chapada

Os retalhos de vegetação entrecortados por veiazinhas reluzentes dos mais diversos tamanhos e, mais adiante, as grandes pedras achatadas no topo, como imensos bonés antiquados, não deixavam dúvidas. Em minutos a pequena aeronave pousaria próximo à reserva da Chapada dos Guimarães com seus poucos tripulantes, entre eles dois jovens – um casal de irmãos.

Pedro Rosa, embora conheça esta geografia muito bem, pois palmilha cada centímetro dela desde que se recorda por gente, sabe que esta temporada na Chapada dos Guimarães será diferente. Não serão apenas férias no sítio do avô. Ele e a irmã, Amanda, desta vez, passarão um período mais longo por lá – os 18 meses de duração da bolsa de estudos para especialização em Paleontologia Aplicada de seus pais, os eméritos doutores Jose Heraldo Rosa e Clarice Andrade Rosa, na Universidade de Dublin, na Irlanda.

Quanto aos seus próprios estudos e os da irmã, já estava tudo acertado. Eles passariam o ano letivo numa boa escola de Cuiabá, onde dariam prosseguimento ao segundo grau sem maiores sobressaltos. Não que Pedro Rosa estivesse preocupado com isso. Embora suas notas fossem de razoáveis a boas (com alguns “excelentes” no boletim), ele considerava as lições enfadonhas. E, entre um bocejo e outro, muitas vezes em sala de aula se questionava de si para si porque o currículo escolar era tão fraquinho, tão superficial... tão chato!

“- Estamos quase chegando. Você precisa desligar seu aparelho...”. Amanda, ao mesmo tempo em que avisava o irmão, puxava o headphone dos ouvidos dele. Pedro olhou irritado, mas Amanda exibia seu sorriso mais angelical e ele acabou desistindo do palavrão que já se formava nos seus lábios.

“- Okay maninha. Vamos lá. Afinal não estamos num Boeing, mas neste aviãozinho de 24 lugares e é melhor ficarmos bem eretos para evitar solavancos”.

Os retalhos de vegetação rapidamente desapareceram e já era possível ver os telhados vermelhos entre as copas das árvores... As ruas, os postes, as pracinhas que a chuva lavava quase todos os dias, tão aprazíveis... E de repente o Aeroporto da Chapada.

A aeromoça que mal podia ficar de pé na pequena aeronave, deu as instruções de pouso e sentou-se para a aterrissagem. Em meio aos ecoturistas que visitavam a região em todas as estações do ano – estavam no Outono de 2001 – e alguns homens e mulheres com a inconfundível vestimenta dos executivos, Pedro e Amanda se sobressaíam por sua juventude evidente. Ele com 17 anos. Ela com 15.

No desembarque, com um sorriso de orelha a orelha, os aguardava o senhor Heraldo Rosa Filho, mais conhecido como professor Rosa ou, para os dois jovens, o Vovô. Os primeiros momentos foram de pura emoção, pois eles tinham afeto genuíno uns pelos outros. Depois, foi reunir malas e mochilas, jogá-las na traseira da velha Land Rover e tocar para o sítio.

Vencida a estrada asfaltada, eles tomaram o atalho coberto de cascalho e, uns 20 minutos depois, cruzavam a porteira da propriedade. À esquerda, a uns três quilômetros de distancia, Pedro vislumbrou o riacho correndo, em parte escondido pela vegetação crescida. Na clareira entre o caminho que levava à casa principal e o riacho, o professor Rosa havia plantado pequizeiros que aparentavam saúde de arbustos vigorosos. À direita da cancela, divisava-se o galinheiro, a horta, a estufa e o curral - havia apenas um garanhão e quatro fêmeas que eram montados pelo professor e seus auxiliares quando as águas vinham com força.

Lá e cá, como projéteis lançados por um gigante embriagado, lascas de granito de três, quatro, cinco e até oito metros de diâmetro, que faziam a alegria dos pássaros, lagartos e também dos homens, que se recostavam nelas para fumar um cigarro de palha. Havia também o pedregulho à beira do rio, onde todos se reuniam no crepúsculo para uma moda de viola. Não eram necessários bancos ou quaisquer outros tipos de assentos, tamanha era a quantidade de pedras que “brotavam” da vegetação. A toda a volta da região, as pedras maiores, as grandes pedras, se mantinham como sentinelas.

Na sebe que anunciava a entrada para a casa principal, Pedro teve um sobressalto, ao divisar um par de olhos redondos e castanhos que soltavam faíscas em meio ao lusco-fusco. Simultaneamente, o pio alto da maritaca ecoou pelo planalto... O grito da ave distraiu Pedro por alguns segundos. Quando olhou de novo para a borla da sebe não percebeu mais nada. O momento que parecia suspenso no tempo e no espaço esvaneceu-se com o grito de alegria de dona Regina Rosa, sua avó, que corria em direção à caminhonete, saudando os netos queridos.

Jana de Paula - Perfil

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Pele Vermelha - Prólogo

Por: Jana de Paula


Você pode não acreditar, mas ainda hoje, em pleno advento do século 21, nos primórdios do Terceiro Milênio, existe uma legítima antepassada dos povos que viveram nos prados, várzeas, chapadões, pantanais, praias, lagoas, montanhas e florestas do Brasil, muito antes de as tribos conhecidas terem visto a luz do sol. O nome da matriarca em questão é Sará-mei-jê, a última descendente de um povo que viveu onde, tempos e tempos depois, floresceram os Boe ou Bororo, na região do Brasil hoje chamada Centro-Oeste. O povo de Sará-mei-jê era menos do que uma lembrança quando nasceram os filhos de Tupã nas selvas brasileiras.

Seu conhecimento milenar data do período em que boa parte do governo mundial operava na área hoje ocupada pelo Lago Titicaca. Nesta época, alguns dos representantes mais ilustres deste governo apreciavam muito as alvas areias que se espraiavam pelo braço de mar que compunha a vetusta Praia Branca, de onde parte esta estória.

Quem quiser conhecer a Praia Branca – e não afirmo que haja quem o queira – deve ser um craque no exercício da abstração. O que sobrou deste que foi um dos principais pólos das lendárias tribos que viveram num tempo perdido nas dobras das eras, está sob o cascalho e as pedras enormes da Chapada dos Guimarães. Com muita atenção e algum conhecimento é possível topar com os restos das conchas com que as donzelas e as belas mulheres enfeitavam seus longos cabelos negros, que emolduravam suas peles cor de bronze novo e que, tempos depois, foram chamadas peles vermelhas.

Com a ajuda de Sará-mei-jê, é possível penetrar neste passado e revivê-lo como se no presente ele vivesse. É que esta vetusta senhora adquiriu um tipo de conhecimento que rompe a noção de linha do tempo, tão necessária hoje em dia. Alguns, menos esclarecidos, chamam às suas artes de magia, mas não na frente dela... Não que seja corriqueiro topar com esta senhora, embora ela habite as margens da Praia Branca, hoje escondida no fundo da Chapada dos Guimarães.

De fato, é dificílimo encontrar Sará-mei-jê. Seria mais honesto dizer que é improvável que alguém mantenha qualquer circunlóquio com ela. Talvez devido à sua idade, a senhora não tem muita paciência com os atuais visitantes dos Domínios Antigos, sempre barulhentos e esfomeados, com toda aquela aparelhagem eletrônica e a petulância de saber alguma coisa sobre ecologia e defesa do meio ambiente.

Sará-mei-jê emerge muito raramente de seu retiro. E sua disponibilidade é sempre um acontecimento. Portanto, já que esta história trata de uma das raras ocasiões em que ela se deixou ver, vamos descrever sua aparência e características. É que sua presença foi exigida nos tempos correntes e é real a possibilidade de a senhora ser divisada na borda de uma clareira da Chapada dos Guimarães, após uma chuvada refrescante e luminosa.

Sará-mei-jê dificilmente se separa da onça Tjericá... Mas nossa intenção é descrever a sábia mulher, que o povo atual que mora na Chapada chama de a “Bugra Onça”. Ela tem a pele lisa e, embora esta dê a impressão de ser espessa como uma casca de carriola, se nós passássemos a mão sobre seu rosto ou corpo – o que é de todo desaconselhável –, a sentiríamos macia e suave e, não, porosa. Os olhos são redondos, ligeiramente amendoados, com a íris de um castanho brilhante como melado de cana bem batido e esticado. O nariz é pequeno com a ponta arredondada e ligeiramente achatado onde deveria ser arrebitado. A boca é firme e fina e, o mais improvável de tudo, tem a dentição completa, com perfeitos dentes perolados e miúdos que rebrilham quando sorri (o que faz com frequencia). O rosto é triangular com a ponta mais fina se arredondando no queixo ligeiramente proeminente. Os cabelos, que cobrem as costas completamente, são negros como a pele de Tjericá. O pescoço longo liga a cabeça a um corpo miúdo, delgado e muito ágil. Os pés são um prolongamento da terra onde estão firmemente pousados: os dedos abertos, grudados no chão, totalmente entrecruzados por veiazinhas azuis, que saltam e latejam visivelmente numa pulsação acelerada. O mesmo circuito de veiazinhas azuis e latejantes se repete no dorso das mãos de dedos compridos, finos, com as unhas quadradas rematando as pontas.

Sará-mei-jê veste uma túnica vermelho-bronze como sua pele, que vai até abaixo do joelho. Para impedir que a massa de cabelos lhe caia no rosto, ela a traz submissa por uma tiara tecida com as penas do Tuiuiú. No pescoço rebrilha uma esmeralda do tamanho de um polegar. Esta é a vestimenta da índia no auge do calor ou no rigor do inverno.

Não se sabe onde é sua morada. Nunca que se recorde, por muitos e muitos anos, um ser humano visitou o lar de Sará-mei-jê para descrevê-lo. Nas raras vezes em que ela aparece, é vista sob um imenso ingá, com Tjericá aboletada a seu lado. O perfume das flores locais que dela emana é encantador e refrescante. Sua presença não causa repulsa, embora seja difícil encará-la por muito tempo: se tem a sensação de mergulhar num lago, cristalino e muito fundo, de onde talvez não se saiba voltar...

Pois esta história justamente começa numa das raras aparições de Sará-mei-jê, na orla do caminho que leva a uma funda cratera, no coração da Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, Brasil.

Jana de Paula - Perfil



No mundo das previsões

Por: Jana de Paula

No mundo das previsões - sejam elas cabalísticas ou empresariais - todo cuidado é pouco.
A partir do momento que desejamos prever alguma coisa, colocamo-nos diante de perigos aos quais na maioria das vezes não atinamos da gravidade inerente. O pior deles me parece o de aceitarmos algum conhecimento exterior como infalível. Não importa se nos baseamos em Nietzsche (muito em voga), nos gregos (incansavelmente revisitados), nos escolásticos, nos techno...não importa. 

Livrar-se de charlatães não deve ser difícil para alguém com hábito de pesquisar e testar idéias. Mas esquivar-se dos donos da verdade, dos conceitos pré-estabelecidos por grupos a que pertencemos - ou queremos pertencer - não é fácil. Baseados nos modelos dos bem sucedidos nós acreditamos que seguindo seus passos chegaremos a bom termo. Eu mesma já acreditei nisso. Mas hoje, pelo método baconiano da negação, vi que esta metodologia é insuficiente.

É fácil notar que há certa tendência de se cultivar a 'fantasia do oráculo'; de que há alguém que vai responder a todas as dúvidas, a todos os problemas... Nem quem 'prevê' deve estar disponível às infindáveis queixas do 'consulente'; e nem este deve dizer amém a toda e qualquer intervenção, por melhor que pareça. Este é o tipo de relacionamento problemático que deve ser evitado a todo o custo.
Lembra-me a piada que ouvi sobre o contato de um mortal com Deus. Num dia de aguaceiro, um homem prestes a se afogar vê que se aproxima, rapidamente, uma lancha. O motorista lhe estende a mão, mas o homem a recusa, certo de que Deus vai ajudá-lo. Depois de engolir muita água, um barco maior também se aproxima e oferece salvamento. O homem insiste em aguardar o braço de Deus. Sua situação fica de fato crítica até que, finalmente, sobrevoa um helicóptero que larga a escada salva-vidas para que o homem se salve. Mas ele desdenha mais este auxílio e repete a frase: "Não. É Deus quem vai me ajudar". Exausto pelo esforço o homem, por fim, morre. Assim que chega ao Céu questiona o Todo Poderoso: "Porque não me ajudastes Senhor?" E Ele responde: "Mas se te mandei uma lancha, um barco, um helicóptero..."

Rascunhei, assim, uma espécie de 'tabela de raciocínio' que espero possa ajudar outros que vivam situação de 'sinuca de bico' em processos de inovação e criação de modelos inéditos e eficazes. Pois, se como dizem os papas da inovação esta implica a existência de um grupo, vamos colaborar no processo.

1) Haveria menos charlatães e donos da verdade no mundo das previsões empresariais se houvesse menos clientes submissos e indolentes.
2) Haveria menos fracassos se cada indivíduo não deixasse tudo nas mãos do grupo.
3) Haveria menos informações irrelevantes se não se evitasse ouvir o galo cantar sem saber onde.
4) Haveria menos contratos falhos, projetos fracassados e/ou abortados, menos dinheiro jogado fora se ficasse definido até que ponto vai a intervenção do consultor e do cliente. E até que ponto é mútuo o comprometimento.
5) Haveria muito menos decepções se o cliente evitasse a dependência total da consultoria.
6) Haveria muito mais contratos satisfatórios se fosse eliminado o caduco contrato perpétuo. Melhor uma parceria tipo Vinicius de Moraes - eterna enquanto dure. E nem pensar em fidelidade. A própria suposição de que a fidelidade deve ser imposta já gora a parceria.
7) Haveria menos decepções se a empresa que contrata não 'terceirizasse o conhecimento'. Assim estamos promovendo a abundância... do outro. Ou seja, seria melhor, bem melhor, se fizéssemos, antes, o dever de casa. Antes de pagar para alguém inovar por você, por que não experimenta a inovação em si mesmo? Ou pelo menos, informe-se, informe-se, informe-se.
8) Não pense que não tenho capacidade de formular estas idéias. Como ser que pensa, eu tenho, sim. Apesar de não ser nenhum guru (a não ser de mim mesma) posso exercitar meus neurônios.
9) Evite a todo o custo submeter-se a quem quer se arvore a líder, se a liderança for proposta de cima para baixo.
10) Evite trabalhar com pessoas que dão muito pouco e exigem demais.
11) Questione-se quando após realizar suas tarefas for solicitado para colaborar nas tarefas de outrem, se este outro não tiver a sensibilidade de reconhecer até que ponto pode pedir isso de você.
12) Subverta a própria hierarquia, se necessário. Mas tenha algo a oferecer. Aquele que subverte a ordem sem estar preparado para isso gera um caos maior.
13) Interesse-se por áreas totalmente alheias a seu tipo de conhecimento. Ingresse num mundo de conhecimento totalmente diverso do seu; aprenda outros conceitos; outros termos; outras formas de encarar a vida; se é líder, aprenda a ser liderado; se costuma ter seus insights em  pesquisas de campo experimente a pesquisa pura; se gosta de rock ouça Mozart...se é um consultor coloque-se na persona do cliente...e vice-versa.
14) Sempre tenha em mente a possibilidade de ter que jogar tudo fora e recomeçar...
15) Duvide das aparências. Elas, de fato, enganam.

Jana de Paula - Perfil

Inveja boa, já ouviu falar?


Por: Jana de Paula
Inveja boa. Este conceito tem batido à minha porta com uma insistência irritante. Alguém conta aos amigos que conseguiu uma bela promoção, mostra fotos de uma viagem de sonhos, confessa que encontrou seu par perfeito, espalha que ganhou uma bolada ou partilha qualquer outra realização que traz prazer, felicidade e bem estar e logo vem uma meia dúzia com a resposta: “Amigo (a) que inveja boa do seu sucesso!”. Como assim?



É, de fato, difícil digerir. Até porque é extrema a coincidência entre aqueles que sentem a tal da inveja boa que também sofram de fome sôfrega pelo emprego do outro, o lazer outro, o amor do outro, o dinheiro do outro... Grassa um surto de curiosidade sobre o que o outro faz com efeitos colaterais incômodos. Um deles é o desejo incontrolável de fazer com que o outro sinta uma inveja boa de si. E, se não é possível que, pelo menos uma vez por dia, cada um do grupo divulgue algo que desperte este nobre sentimento, fica faltando alguma coisa. “Será que vão me considerar um fracassado porque não incito inveja boa em ninguém há mais de 24 horas?”, eles, provavelmente, pensam.

Suponho que fosse assim que se vivia nos estertores do reinado de Luiz XVI (aquele que perdeu sua nobre cabeça na guilhotina). Também imagino que a tal da inveja boa fosse sentimento corrente na mórbida corte de Calígula (é estranho escrever este nome com letra maiúscula, como se me referisse ao nome de algum ‘humano’) ou o seja, ainda, em qualquer sociedade apodrecida.

É claro que eu corro o risco de ser estigmatizada - coitadinha de mim, incapaz de sentir a tal da inveja boa! -, na remota hipótese, é óbvio, de alguém vir a ler estas mal traçadas. Mas, embora tenha instalado na minha delicada goela um triturador de palavras desagradáveis (tanto as que saem como as que entram), estas duas palavras juntas: inveja+boa ficam entaladas de forma infalível.

Em geral, a gente adjetiva com bom ou boa alguma coisa que, de fato, o seja. E inveja, definitivamente, não se insere na listas das Virtudes, estas sim merecedoras dos melhores adjetivos. Inveja é um defeito [São Tomás de Aquino diria que é um pecado gravíssimo]. E como qualquer defeito ou erro é uma deformação da qualidade e da virtude. Daí que absolutamente não existe inveja boa.

O oposto da inveja é a Caridade. Assim, inveja é uma deformação da Caridade (maior prazer em escrever esta palavra com C maiúsculo). Não digo, é claro, que a inveja seja a deformação da Caridade, como se a esta virtude coubesse um oposto em igualdade de força e poder. É, no máximo, o que os calígulas da vida conseguiram como adendo para substituir um conceito, um sentimento que são sumariamente incapazes de sentir. Talvez, ao virem em prática a Caridade, o poder que dela emana e o quanto ela obtém, não importa o peso e a medida adotados, os calígulas sentiram corroer dentro deles a inveja nua e crua. E, para disfarçar esta deformação, sapecaram um belo adjetivo, como os cortesãos pré Revolução Francesa disfarçavam sua incompetência em governar cobrindo-se de ouro da cabeça aos pés.

Até aí, tudo bem. ‘Eles’ que se entendam ou não, como queiram. O que incita a Virtude da Caridade em mim é ver que muita gente merecedora do adjetivo boa, sem saber ao certo onde o galo cantou, repete a frase. Acha elegante! “Ora”, talvez pense a galera gente boa, “é meio brega eu dizer que, ao compartilhar comigo seu momento de verdadeira felicidade, meu amigo ou minha amiga despertou em mim um forte sentimento de amizade, simpatia e autosatisfação e eu fiquei pleno ou plena de Caridade”.



O que? Trata-se de uma questão de limite de caracteres e inveja boa é uma frase muito mais curta que todo este discurso sobre as Virtudes? Touchée! Hoje em dia isto faz todo o sentido. É preciso ser conciso para se fazer entender. Eu, de minha parte, quando me deparo com este sério dilema de limite de caracteres (o que para mim, de fato, é um dilema, prolixa que sou), dou os meus antiquados parabéns (são só três caracteres a mais) e fico satisfeita. Espero que o objeto do meu afeto também o fique, pois, sou brega o suficiente para dizer em bom som: “é de todo o coração”. 

Jana de Paula - Perfil